MEMBRA DISJECTA: Isto é um martírio, sempre foi. É um martírio sobretudo a ausência. Se de um marido contratado nos anos setenta, prolongado. Se de um filho que se foi numa curva das auto-estradas do Cavaco, abreviado. Ouço e cheiro estes relatos martirológicos há muitos anos. Enfado-me e arrependo-me. O mártir, o mártyr grego para testemunha, sim, esse cristão que nos tempos de Nero e de Diocleciano se recusava a negar a fé, é um ser enfadonho. Recusa-se a esquecer, mesmo quando vai trabalhar, comer, fornicar. Por piada costumo dizer-lhes, a eles, aos mártires, que são como os habitantes das cidades bombardeadas: no dia seguinte amontoam uns tijolos e afixam um letreiro com o preço do pão.
A ideia segundo a qual se renasce após a tragédia é cara aos estóicos. O termo Renascença no seu sentido socio-político, só toma o seu significado actual, como se sabe, com Burckhardt. Mas Maquiavel ( nas Histórias Florentinas) utiliza-o no episódio da Cola di Rienzo, a propósito da renascença de Roma ( Roma rinata), e Mantegna também, no seu S. Sebastião, hoje no Louvre. A coisa é velha de séculos, com Maquiavel ou com as flechas do destino de Mantegna: depois da peste, a vida; só a resistência é divina.
Reside aqui vagamente a interpretação popular do estoicismo, como se resistir fosse uma questão de vontade ou de necessidade. Tomara. A resistência estóica é um assunto de virtude e de sobrevivência, aquela encontrando esta num feliz acaso. A peste foi um acaso. Por isso, quando perdemos quem amamos, alimentamo-nos literalmente da resistência. Cada músculo, cada som, cada gesto é uma homenagem. A nós, aos que ficamos com o que sobrou.
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