O CHATO FILOXERIFEANO*: Há umas quatro décadas atrás, Guilherme Figueiredo, no seu Tratado Geral dos Chatos, estudou com segurança a universal figura. Porém, não contemplou uma estirpe particularmente aflitiva: os chatos filoxerifeanos.
Estes indivíduos surgem em todas as classes sócio-económicas e caracterizam-se pelo desejo compulsivo de estabelecer um contacto informal e amistoso com as autoridades quando estas se encontram no desempenho das suas funções.
Muitos filoxerifeanos revelam a sua natureza, embora de forma inconsciente, logo na primeira infância: acercam-se inopinadamente de um agente da PSP e insistem em querer usar o seu boné. Ingénuo, o polícia cede graciosamente à abordagem, desejoso de evidenciar a boa relação das autoridades com a população em geral e as crianças em especial (complexo sinite-parvulos-venire-ad-me); mal ele sabe que esse acto de ternura pode catalisar o nascimento de um filoxerifeano, pronto para o chatear, a si e aos seus colegas, até à morte.
A fixação no boné emerge de novo alguns anos depois, quando o filoxerifeano estuda na Universidade e desfila nas festividades académicas, incorporando então as dimensões de chato postulante e de chato ofertante (Figueiredo, p. 54 e s.): agora, o pedido do boné ao agente é acompanhado da oferta encarniçada ("olhe que eu fico ofendido!") de um gole da cerveja ou do espumoso (em qualquer caso, tépidos) que tem na mão. Nesse momento, podem observar-se os efeitos perniciosos da chateação na vítima através de alguns sintomas típicos: sorriso amarelo, reviramento dos globos oculares na direcção do céu, exame minucioso das próprias unhas, abandono lento do local com as mãos atrás das costas e, em casos extremos, rendição ao pedido.
Ao longo da vida, o filoxerifeano vai-se definindo como espaventoso ou vermiforme.
O espaventoso, quase sempre ofertante, caracteriza-se por gostar de ser visto com um membro superior colocado por cima do comandante dos bombeiros que acaba de chegar de uma missão, ou por tentar trocar, em voz alta, mensagens em código, acompanhadas de piscadelas de olho, com os funcionários das finanças. Todas estas acções são acompanhadas de uma ligeira rotação de cabeça para contar as pessoas que presenciam o suplício da vítima.
Diversamente, o filoxerifeano vermiforme é um introvertido, de disposição tímida, e caracteriza-se pela pulsão inelutável que o leva a entabular conversas inúteis com a autoridade (exemplo paradigmático é o do vendedor de relógios ambulante que se aproxima de um polícia para lhe perguntar as horas). Mesmo que saiba onde fica Moreira de Cónegos, o vermiforme automobilizado não resiste a parar na estrada para pedir indicações à patrulha da BT. Em casos avançados, o vermiforme pára espontaneamente o carro numa operação stop, sem que ninguém lho peça, para ser fiscalizado; em casos extremos, estaciona numa zona proibida para se auto-denunciar e, simultaneamente, pedir a indulgência do agente. Entrevistados sob anonimato, vários vermiformes admitiram que se entregam à chateação para experimentar o prazer aliviado de contactar com autoridades e continuar em liberdade.
Como todos sabem, os filoxerifeanos causam enorme dano social, elevando para níveis altíssimos a ansiedade e o stress até ao grau de chaturação (Figueiredo, p. 29 e s.), a qual, por sua vez, provoca a ineficiência, a apatia e a irritação permanente das autoridades. Infelizmente, não se conhece terapia adequada, pelo que a prevenção é fundamental. Se o seu filho pedir o boné a um polícia, pense nas suas responsabilidades sociais e convença-o de que existe uma alta probabilidade de ficar algemado na esquadra. As autoridades, e o povo em geral, agradecem.
*Com a gratidão devida ao Prof. XB, Amigo desta nau, que me deu a conhecer a obra de Figueiredo.
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