ALMANAQUE DAS INTOXICAÇÕES IV: A página de hoje encontra alguma actualidade, já que abordaremos a Bolívia. Como era de esperar, alguns habitués já apontam o dedo aos EUA, mas eu aconselharia prudência. O planalto andino, a política sul-americana, e o mercado da coca constituem um terreno muito escorregadio. A RTP hoje, por exemplo, passava uma imagem deliciosa: La Paz a ferro a fogo porque os bolivianos estão contra a alienação do seu mais importante recurso natural. O povo teme ficar mais pobre, os americanos querem tirar-lho. Vamos recuar um pedaço:
A Bolívia viveu em setentas, e até início de oitentas, uma narco-ditadura, personificada pelos generais Hugo Banzer, 1971-1978, e depois por Luis Garcia Meza, 1980-1981. Meza toma o poder a 17 de Julho de 1980, para barrar o caminho à coligação de esquerda presidida por Hernan Siles Suazo. Mas na Primavera de 81, dá-se mais um putsch da cocaína, quando Luis Arce Gomez ( ex-ministro do Interior de Meza) reforça o narco-poder, mandando assassinar o deputado socialista Marcelo Santa Cruz. A democracia chega pela mão do regressado presidente Hernan Siles, que inclusive entrega à justiça francesa Klaus Barbie, que entretanto se tinha dedicado à Noivos da morte, uma organização paramilitar e narco-traficante.
O problema é que o principal recurso boliviano reside na actividade cocalera. Entre 1980 e 1990 a produção de coca aumentou 100% sobretudo no Chaparro, nos Yungas (província de La Paz), em toda a zona de Cochabamba ou no alto Huallaga. Tanto os cocaleros ( cultivadores), como os pisa-coca, equivalentes aos pisadores de uvas, ganham normalmente 15 vezes o salário de um camponês da jorna tradicional. Por isso, com democracia ou putschs, o regime boliviano vive da coca há mais de trinta anos.Foi sempre do interesse dos traficantes assegurar a identidade cocalera do regime. Por isso Roberto Suarez Goméz, nº 1 do narcotráfico na altura do regresso à democracia, em 1982, agitou na altura, exactamente o mesmo fantasma que hoje é agitado em La Paz: em nome do anti-imperialismo yankee e de um patriotismo de pacotilha, aperta o Prsidente Siles para que nenhum outro recurso natural sustente a economia boliviana. Percebe-se fácilmente: o dinheiro da coca é formalmente ilegítimo, e por isso a sua distribuição e aplicação não sofre qualquer fiscalização política. Como explicava Alvaro Gomez, antigo director do El Siglo de Bogotá, o dinheiro da droga é liquidamente agressivo, trespassa qualquer sector social, arrasa a concorrência de qualquer actividade fiscal e contabilísticamente organizada. É assim que Nicole Bonnet, correspondente do insuspeito Le Monde, em Lima, na década de 90, podia descrever o cenário irreal de muitas zonas rurais bolivianas, onde no meio da maior pobreza de investimento básico - estradas, saúde, escolas, saneamento - se podiam encontrar todos os musts da sociedade de consumo ocidental: bons carros americanos, congeladores a gás, televisões, etc.
Não espanta que a pacificação que rodeia a eleição do presidente Zamora em 1989, tenha chegado através de um acordo entre o seu Movimento da Esquerda Revolucionária e a Acção Democrática Nacional do corrupto traficante e ex-presidente, Hugo Banzer. Banzer, Roberto Suarez Goméz, ou Cuchichi Gutierrez , preso em Miami em Junho de 1980, não tinham, como hoje os seus sucessores, interesse nenhum na troca americana: gaz em vez de coca. Não está em causa a duplicidade americana no terreno da cocaína, está em causa uma política oficial de algumas admnistrações ( algumas assaz idolatradas) americanas. Mas como sempre, o ódio cego à America, irá fazer muita gente chorar pelo pobre povo boliviano, a quem querem arrancar o seu tesouro natural. Mesmo quando esta política foi ao longo de todos estes anos, muitas vezes tentada pela América boa, de Carter ou de Clinton. Enfim...
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